Antes do Filme
Quando estreou em 2000, O Auto da Compadecida (Guel Arraes) se tornou um clássico imediato do cinema brasileiro. A adaptação da peça de Adriano Suassuna trouxe uma perfeita harmonia entre a comédia, a religiosidade e o regionalismo. Dezenove anos depois, Maria do Caritó é adaptado para a tela grande, também baseado em uma peça teatral (de Newton Moreno). Apesar de uma história completamente diferente, esses mesmos temas são novamente aplicados com muito sucesso. Agora, esqueça o drama social sobre a miséria, pois o foco está na repressão feminina e no machismo estrutural — tema igualmente muito presente também em A Vida Invisível, longa tupiniquim indicado ao Oscar deste ano.
Enredo e Trama
Assim que começa, Maria (Lília Cabral, Divã) explica o que significa “caritó”: uma pequena prateleira no alto de uma parede, onde as mulheres escondem objetos para as crianças não pegarem. Assim, surge o apelido Maria do Caritó, pois ela foi esquecida e abandonada na estante. Devido a uma promessa feita pelo pai durante seu nascimento, a protagonista nunca se deitou com um homem e sua vida foi moldada para sua canonização como santa. Entretanto, conforme esse dia vai chegando, um circo chega na cidade fictícia de Úrsula, abalando os sentimentos da quase-santa, que nunca pediu essa alcunha.
É compreensível que Maria do Caritó não funcione para algumas pessoas, pois todos seus elementos são exagerados. Todavia, a plena autoconsciência do diretor João Paulo Jabur consegue transformar esse descomedimento a seu favor. Pensando na associação de Maria (não à toa leva o mesmo nome da personagem bíblica) com a religiosidade, ele aplica uma forte presença do azul, representando a cor do céu e da divindade. Igualmente, focos de luz constantemente destacam a personagem em cena, além de quando Jabur mostra Caritó através de um véu para representar sua pureza. Ou por exemplo, a clara referência à crucificação quando a personagem é amarrada para o russo jogar facas ao seu redor.
Porém, é justamente esse contraste entre uma direção transcendental que se leva a sério e um roteiro debochante da espiritualidade que traz um caráter metalinguístico e irônico dentro do filme. Assim como o pai fanático, o candidato corrupto e o padre, é como se Jabur também tentasse elevar Maria a um outro patamar, enquanto a própria vai recusando este altar ao longo da história. Esta briga entre forma e conteúdo acaba gerando momentos hilários, como quando Maria é abraçada pelo povo em uma cena quase messiânica, mas com uma canção ridiculamente caricata — que fala de sua teia de aranha, para não entrar mais em detalhes.
Personagens e Atuações
Certamente, a grande força de Maria de Caritó reside em Lília Cabral. Afinal, é preciso muita imersão para levar a sério uma protagonista tão velha e inocente como Maria. Contudo, a atriz de 62 anos consegue o incrível feito de parecer uma criança no corpo de um adulto desde sua primeira aparição. Isso é visível tanto em seu olhar iluminado, de uma menina que vive um conto de fadas, quanto por seu jeito gracioso de andar. Já nas poucas situações que a narrativa exige maior dramaticidade, ela rapidamente alterna sua feição para uma profunda emotividade.
Se por um lado quase tudo que Maria faz de maneira ingênua funciona comicamente, os momentos mais conscientes exageram demais até para o próprio filme, como na cena de dar vergonha alheia da cantoria — que ainda é repetida! Este mesmo tipo de humor, que vai na base da tentativa (para cada piada bem sucedida, uma ruim), também está presente na figura do “russo” Anatoli (Gustavo Vaz), que vai gritando palavras como “Dostoiévski”, “balalaika” ou piadas sexuais envolvendo “Chechênia”.
Depois dos Créditos
Maria do Caritó não chega a ser exatamente um retrato do interior do Brasil — onde estão os negros? — mas tem algo a falar sobre coronelismo, fanatismo religioso, manipulação da fé, repressão sexual e machismo estrutural. Por fim, uma dócil e virtuosa Lília Cabral mostra que não há mais espaço para os homens continuarem ditando a vida das mulheres.