Review | The Boys (1ª temporada) – Um mundo onde heróis não são tão bons assim!

Baseada nas HQs de Garth Ennis, a violenta série acerta ao mostrar um mundo onde super-heróis não são tão santos quanto imaginamos e a maneira como eles são explorados para fazer dinheiro para uma grande indústria, quase como uma crítica a própria Marvel

Antes da Temporada

The Boys, série exclusiva da Amazon Prime Video, é baseada nas histórias em quadrinhos de mesmo nome e criadas por Garth Ennis (Preacher, Punisher). A websérie é produzida por Eric Kripke (criador de Supernatural), Seth Rogen (sim, o ator) e Evan Golberg (diretor de A Entrevista). A primeira temporada possui oito episódios de 50 a 56 minutos cada.

Em um mundo onde há mais de duzentos super-heróis (chamados Supes, em inglês), todos eles são empregados da megacorporação Vought. Idolatrados em um nível messiânico, a empresa aproveita disso para lucrar de todas as maneiras possíveis, através de um marketing agressivo. Entretanto, vamos descobrindo que os Supes são figuras bem diferentes das que aparentam ser diante das câmeras. Há alcóolatras, estupradores e assassinos no grupo, que está mais preocupado com a fama do que salvar vidas.

Trama e Roteiro

A trama começa quando Hughie (Jack Quaid, “Marvel” em Jogos Vorazes), um simples vendedor de eletrônicos, tem sua vida destruída por um membro do mais alto escalão dos Supes (Os Sete). O rapaz estava na rua, conversando com sua namorada, até que, repentinamente, o velocista A-Train (Jessie Usher, Shaft de 2019), atravessa a garota ao meio durante uma corrida na velocidade da luz, fazendo com que ela exploda instantaneamente. Movido a vingança, Hughie irá se juntar ao misterioso Billy Butcher/Bruto (Karl Urban, Senhor dos Anéis; Star Trek; Dredd; Thor: Ragnarok) e seu grupo, The Boys, para derrubar a Vought.

A primeira temporada, basicamente, se constitui em um jogo de caça-e-rato entre a Vought e os Boys, que tentam procurar provas para incriminar a empresa. Há revelações interessantes e surpreendentes envolvendo a parte política da série, mas quando se trata de segredos envolvendo o passado dos personagens, todos são clichês e previsíveis. 

Um dos pontos mais altos de The Boys é a maneira como trata o fenômeno dos heróis como mercadoria. A Vought faz filmes, séries, propagandas, bonecos e muito mais produtos envolvendo-os. Nesse sentido, o cuidado aos detalhes feito pela produção está impecável, estando sempre presente nos cenários algo relacionado a esse marketing. Até por conta disso, torna-se repetitivo e desnecessário quando o roteiro usa de diálogos expositivos para reforçar essa ideia, que já foi mostrada visualmente. 

O roteiro é consciente de como nosso cenário atual não está longe dessa realidade, pois empresas estão sugando ao máximo o que dá para aproveitar de um bem. Há um brilhante momento em que Seth Rogen interpreta a ele mesmo e brinca com a Marvel, dizendo que queria fazer seu próprio universo de filmes. Outro ponto extremamente conectado com a realidade é a forma como mostra pessoas se iludindo com celebridades, criando em suas cabeças uma imagem idealizada de seres perfeitos e infalíveis. 

Há ainda espaço para que o roteiro trate de um tema importantíssimo envolvendo a luta feminista. Ele mostra como, infelizmente, ainda é muito comum mulheres sofrerem abusos de pessoas hierarquicamente superiores em seus ambientes de trabalho. Não menos importante, a sexualização das heroínas também é um ponto debatido, quando uma das protagonistas questiona o porquê de seu novo uniforme ser tão curto e decotado. Aliás, a mesma personagem também está envolvida em uma subtrama sobre a manipulação religiosa de fiéis. 

Personagens e Atuações

Assim como seu personagem, que é o principal Supe da Vought e idolatrado por todo mundo, o destaque em atuação vai para Antony Starr (o protagonista Lucas Hood em Banshee). Interpretando Homelander/Capitão-Pátria, o invencível herói e modelo para todas as crianças, o ator consegue demonstrar um ar de superioridade que se exterioriza por sua fisicalidade e traços de arrogância e egoísmo. Criado em laboratório, ele nunca soube o que é ter uma família normal. Isso faz com que Homelander seja extremamente afetado, buscando Madelyn Stilwell (a excelente Elisabeth Shue, indicada ao Oscar por Despedida em Las Vegas), diretora da Vought, uma figura materna que nunca teve em sua vida. Como ele nunca amou, essa relação também ganha um estranho contorno sexual Edipiano.

Outro destaque vai para Butcher, que, cego pela vingança, acaba por cometer atos tão cruéis quanto seu próprio inimigo. O ator Karl Urban traz um sotaque puxado e um vocabulário repleto de palavrões, se destacando nos momentos de fúria do personagem, sendo possível identificar um genuíno ódio nos olhos do personagem. Já Hughie (Jack Quaid), envolvido em uma jornada de moralidade, passa por uma enorme evolução, saindo da inércia e do vitimismo para um extremo altruísmo e proatividade. Completam os The Boys o carismático faz-tudo, especialista em computação e armas, Frenchie (Tomer Capon, Fauda), que se envolve com a introspectiva e mortal Fêmea (Karen Fukuhara, Katana em Esquadrão Suicida). Além deles, há Mother’s Milk (Laz Alonso, Fenix em Velozes e Furiosos 4) — a tradução literal é Leite da Mamãe —, o menos carismático do grupo.

Além de Homelander, conhecemos os outros Supes que completam a alta-cúpula dos Sete. A que mais brilha é Starlight (Erin Moriarty, Hope em Jessica Jones), tanto literalmente quanto figurativamente. Ela é recém-chegada ao time e é a principal peça, que, junto com a audiência, vai descobrindo que o mundo dos super-heróis é menos charmoso quanto parece. Junto com Hughie, ela também possui uma gigante evolução. No entanto, a personagem com maior potencial e menos explorada é a Rainha Maeve (Dominique McElligott, Hannah Conway em House of Cards), que aprendeu a “fazer parte do jogo”, mas aos poucos vai vendo que talvez eles estejam passando dos limites. 

A figura mais complexa talvez seja The Deep/Profundo (Chace Crawford, Nate em Gossip Girl). Inicialmente, ele é mostrado como um ser desprezível que se utiliza de seus privilégios para se aproveitar da ingênua Starlight. Posteriormente, o roteiro humaniza o personagem, que paga por seus atos, aprofundando e mostrando como ele é inseguro por ser o herói mais descartável — afinal, seus poderes só são aquáticos — e também é sensível a causa animal, por conseguir falar (e fazer outras coisas) com seres do mar. O melhor disso é que os roteiristas, apesar de mostrarem um personagem complexo, não caem na armadilha de romantizar um abusador, sempre lembrando a audiência de quem ele é quando talvez estivéssemos começando a gostar do personagem. Encerra o grupo de protagonistas A-Train (Jessie T. Ucher), velocista viciado em drogas para melhor performance, talvez o mais caricatural dos personagens, com sua estupidez.

Vale mencionar que há ótimas participações de Haley Joel Osment (o menino de Sexto Sentido e Inteligência Artifical) e Britanny Allen (What Keeps You Alive) como supes e de Simon Pegg (Star Trek, Todo Mundo Quase Morto) como pai de Hughie, além de pontas feitas por atores famosos como Giancarlo Esposito (Gus de Breaking Bad), Jim Beaver (Bobby de Supernatural) e o músico John Williams (trilha sonora de Star Wars). 

Depois dos Créditos

Ao desviar consideravelmente das HQs de Ennis, a série acerta em várias mudanças. Hughie, por exemplo, é um escocês fanático em ufologia, algo bem datado e estereotipado. Já a diretora Stilwell é um homem e toda sua interessante relação maternal-sexual com Homelander seria perdida. Porém, o essencial é mantido: a violência gráfica do quadrinista que proporciona momentos marcantes. Com um ótimo elenco, trilha sonora e personagens complexos, The Boys é muito mais sobre a natureza humana e questões como vingança e corrupção do que grandiosas batalhas envolvendo superpoderes.

Fazendo uma crítica a sociedade da idolatria e dos falsos ídolos — além de aproveitar para alfinetar a superexploração de marcas como a Marvel — The Boys é uma das melhores adaptações de super-heróis já feitas e, com uma segunda temporada já confirmada, possui potencial para explorar um universo riquíssimo de mitologia própria (apesar de todos seus Supes serem versões genéricas de personagens famosos). Desconstruindo o modelo perfeito que estamos acostumados a ver em outras franquias, a série mostra, de maneira mais realista, como essas figuras provavelmente seriam se existissem. Não há como ganância e poder estarem desvinculados no mundo real. 

Confira nossa crítica em vídeo aqui!

 

Revisão: Raquel Severini

8

NOTA

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