Festival de Cannes | Sorry We Missed You

Sorry We Missed You

Denunciando a falta de direitos trabalhistas no meio privado, o veterano Ken Loach traz o comovente dia-a-dia de uma família complexa e endividada.

Antes do Filme

Em tempos de saturação das empresas privadas de transporte ou entregas, se tornou fácil para o cliente escolher a menos custosa em seu bolso. Por conseguinte, pequenos detalhes, como taxa grátis de entrega, se tornaram o diferencial na hora da decisão. Contudo, no meio deste cabo de guerra entre corporações e consumidores, há uma figura normalmente esquecida: os motoristas e entregadores. Sem nenhum dos lados querendo ceder, cabe a essa classe trabalhadora sustentar o maior ônus desta história.

A fim de denunciar as dificuldades decorrentes da falta de regulamentação no setor privado, o veterano Ken Loach (Eu, Daniel Blake) dá continuidade a uma temática presente em toda sua carreira. Em Sorry We Missed You – filme que muito bem poderia ter vencido a Palma de Ouro – a decadência do Estado de bem-estar social é dissecada através do dia-a-dia de uma família com diversos problemas.

Trama e Roteiro

Precisando pagar as contas da família e com risco de endividamento, Ricky Turner (Kris Ritchen) começa a trabalhar para uma empresa privada de entregas – praticamente um Sedex privado -, tendo diversas metas a cumprir e poucas concessões feitas por seu chefe, Maloney (Ross Brewster). Também para sustentar a casa, sua esposa Abbie (Debbie Honeywood) trabalha como cuidadora de idosos, podendo ser chamada a qualquer momento para a função. Além dos problemas financeiros, o casal precisa cuidar da filha pequena, Lisa Jane (Katie Proctor), jamais poupada das constantes brigas que acontecem na casa, e o adolescente, Seb (Rhys Stone), que não dá muita atenção para a vida escolar, mas encontra sua paixão na arte da pichação.

Um dos elementos mais fortes de Sorry We Missed You é a dinâmica familiar, mostrada através de uma extrema naturalidade nas interações entre seus membros. Assim como uma família comum, em um mesmo dia vão de momentos de extremo companheirismo e afetos até brigas calorosas. Sem tender para uma parcialidade moralista que coloca os pais como figuras exemplares, Ken Loach sabe compreender a rebeldia inerente do jovem e não usa disso para fazer uma panfletagem contra a marginalidade. Pelo contrário, o diretor culpa o sistema e a falta de atenção dada pelos pais – essas, provenientes das intensas jornadas de trabalho – para a evasão escolar.

Já quando aborda a rotina de trabalho de Ricky, há uma certa comicidade que traz leveza às situações imprevisíveis que acontecem em seu dia-a-dia. Tal abordagem, além de render boas risadas em momentos inusitados – como uma troca de xingamentos quando o protagonista vai fazer uma entrega com uma camisa de futebol – potencializa os momentos mais dramáticos do filme.

Sendo um dos principais pontos da trama, Ricky sempre deve carregar um scanner, usado como controle para as entregas, além de rastreamento, controlando sua vida. Essa interação homem-máquina aponta justamente para a perda da pessoalidade das relações trabalhistas, agora regidas por aparelhos tecnológicos que não possuem a capacidade de compreender as particularidades da vida de cada trabalhador. Não menos importante, também evidencia como a humanidade se tornou refém de sua própria criação, além de ser uma crítica contra o sistema de total vigilância aos funcionários.

Apesar de conhecido principalmente por seu cinema de realismo social, Sorry We Missed You também traz uma reflexão sobre a forma como os idosos são tratados e consequentemente esquecidos pela sociedade. Os diálogos entre Abbie e suas pacientes são os mais ricos do roteiro. Além disso, há espaço para temas como a abstração da arte e o uso desta como mensagem política, abordados na subtrama de Seb e seu grupo de amigos pichadores.

Personagens e Atuações

Se há uma razão para que o drama Loachiano não tire a nota máxima, esta é uma falta de complexidade no patrão de Ricky. Em uma tentativa de provar seu principal ponto, o roteiro vilaniza esse personagem, que personifica a figura do capitalismo, se tornando unidimensional. Assim, o diretor faz uma pequena concessão ao caráter de verossimilhança que acompanha todo o filme em prol da funcionalidade de sua narrativa. No entanto, o ator estreante – assim como todo o resto do elenco – Ross Brewster se aproveita dessa opção narrativa para fazer de Maloney um personagem odiável.

Da mesma forma, os outros atores semiprofissionais também se mostraram um tremendo acerto da equipe de casting. Os jovens Rhys Stone e Katie Proctor mostram uma incrível versatilidade ao equilibrarem momentos de inocência infantil com fortes diálogos dramáticos e explosivos. Enquanto isso, Debbie Honeywood traz a doçura necessária que o trabalho de sua personagem exige, mas também mostra sua força, tendo particularmente um monólogo inesquecível para aqueles que assistiram ao filme. Não menos importante, Kris Ritchen possui uma atuação crescente digna de premiações, que culmina em um protagonista visivelmente exausto no terceiro ato.

Depois dos Créditos

Sorry We Missed You é mais um excelente longa de Ken Loach, que, como poucos, consegue captar com precisão o lado mundano da classe trabalhadora, tendo também uma outra profunda camada que funciona como drama familiar. Sem jamais roubar o foco para si com uma direção autoral, o diretor deixa espaço para sua história fluir naturalmente. Sua intenção é fazer com que o espectador, conforme o passar do filme, vá se revoltando e se sentindo angustiado – juntamente com os protagonistas – contra o sistema injusto e ganancioso. E ele consegue.  

 

Revisão: Raquel Severini

Sorry We Missed You

9.5

NOTA

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