Antes do filme
É difícil assistir “Nós” sem pensar em “Corra!”. Jordan Peele estabeleceu um novo patamar de qualidade em um gênero que está saturado com produções simplistas e narrativas pobres. Dessa forma, há uma expectativa prévia sobre o segundo filme do diretor e roteirista.
Com um oscar de melhor roteiro original já em seu primeiro longa, Peele demonstra que não é um cineasta qualquer. Sua criatividade constrói narrativas inventivas, usando elementos extraordinários que flertam com a ficção científica distópica e com o sobrenatural existencialista. Essa fórmula, utilizada em “Corra!”, se repete em “Nós” de maneira magistral. Tudo isso com uma ambientação familiar e verossímil, com reviravoltas instigantes.
Personagens e Atuações
A trama se passa em Santa Cruz, Califórnia, durante as férias de verão da família Wilson. Adelaide (Lupita Nyong’o) é a mãe atenciosa, com um passado traumático envolvendo a praia da região. Já seu marido, Gabe (Winston Duke), é um pai hiperativo e engraçado que tenta fazer a família interagir durante a viagem. Seus filhos são Zora (Shahadi Wright Joseph), uma adolescente que não vive sem seu celular; e Jason (Evan Alex), uma criança inquieta que sempre usa uma máscara de Chewbacca. A interação entre esses personagens funciona como deveria: sentimos o carinho que eles compartilham, ainda que possuam problemas de relacionamento.
Criando um contra-ponto aos Wilson, temos a família Tyler: americanos brancos de classe média alta que parecem ter um desdém constante por tudo e todos. Kitty (Elisabeth Moss) e Josh (Tim Heidecker) proporcionam momentos de humor sádico, com atuação de destaque para Elisabeth Moss.
Lupita também apresenta uma interpretação ímpar, seja como Adelaide ou como Red. É impressionante a carga dramática e a tensão expressadas pela atriz nos diversos momentos de enfrentamento entre as personagens. A forma com que Red caminha e fala é algo digno de pesadelos. Infelizmente, seu parceiro Winston Duke não se sai tão bem. Embora o timing cômico seja preciso, não há outras nuances dignas de destaque. No restante, as atuações não comprometem.
A Narrativa
O desenvolver da história é algo realmente intrigante. O mistério que envolve os Acorrentados proporciona um bônus ao suspense de sobrevivência experimentado pelos protagonistas. Por conta do sucesso em criar uma ambientação imersiva, esses elementos são potencializados, chegando a criar uma sensação constante de perigo enquanto tentamos entender o que levou os personagens ao estágio calamitoso que experienciam.
A maior problemática narrativa fica por conta justamente do entendimento e revelação sobre os Acorrentados. Peele faz uso de uma sequência expositiva demais, embora seja dramática o suficiente para não comprometer por completo a experiência final. É positivo dar margem interpretativa em alguns momentos mas, quando certos elementos essenciais para a narrativa permanecem sem maiores meios para serem decifrados, há o risco de desviar o foco . Alguns elementos permanecem obscuros e abertos à interpretação do público, sem subestimar a inteligência da audiência.
O destaque da estrutura narrativa desempenhada por Peele certamente é a sua habilidade de apresentar elementos que ganham importância de maneira orgânica com o desenrolar do enredo. O primeiro ato introduz elementos que ao serem retomados posteriormente recompensam de maneira satisfatória os espectadores mais atentos, sem representar um abuso de convencionalidade. As peças apresentadas se encaixam naturalmente e de maneira verossímil. Ao final, o público é brindado com uma revelação que traz uma nova perspectiva de toda a experiência, como aquela verdade que se esconde bem debaixo de nosso nariz e não percebemos.
Depois dos créditos
A sensação ao sair da experiência de assistir “Nós” é a melhor que se poderia querer dado o atual cenário do gênero de suspense/terror. Obviamente, existem elementos que afastam o filme da perfeição, mas isso não impede que possamos definir o longa como uma obra-prima contemporânea do terror. Resta esperar que esse patamar de qualidade vire referência para as demais produções desse gênero.