Antes do Filme
Um dos personagens mais cultuados dos quadrinhos, um dos atores mais renomados da atualidade e um estúdio que finalmente aposta em algo novo. Coringa possui as credenciais que lhe permitiriam entrar no hall de maiores sucessos ou maiores fracassos do cinema. Com tudo que precede a chegada da obra às telonas, não há espaço para o mediano. O mero anúncio da produção já criava enorme expectativa.
A divulgação do filme de Todd Phillips foi relativamente enxuta. Os teasers e trailers, que forma poucos, não revelavam detalhes sobre a trama. Serviam mais para mostrar qual seria o conceito utilizado nesse estudo de personagem protagonizado por Joaquin Phoenix. Dessa forma, será difícil realizar uma análise crítica do filme sem eventualmente revelar pequenos spoilers do começo da história.
Trama e Roteiro
A trama de Coringa não se baseia diretamente em nenhum quadrinho. É uma história de origem original, mas que sabe utilizar muito bem os elementos mitológicos do personagem e do universo de Batman. Além disso, é interessante pontuar que a intenção do filme foi, desde o começo, servir como um mergulho profundo no conceito do personagem. Portanto, não há pretensão em criar uma narrativa complexa de grandes proporções, o que é adequado para a proposta.
Acompanhamos a vida de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um palhaço falido aspirante a comediante de stand-up que sofre de problemas psiquiátricos. As coisas não vão muito bem para Arthur, que tem grande dificuldades para se relacionar com aqueles a sua volta. São diversos os momentos em que a dor que o protagonista sente simplesmente por estar vivo fica evidente.
Não só a vida de Arthur parece se deteriorar a cada cena. Tudo que a rodeia segue o mesmo caminho. A cidade de Gotham, que serve de cenário para essa distopia pessoal desse indivíduo solitário, é também elemento fundamental para sua decadência. As ruas são inundadas de lixo, as pessoas estão com medo, a cidade está cancelando programas de assistência social. No meio de todo esse caos, quem se apresenta como única chance de salvação é o empresário Thomas Wayne (Brett Cullen).
Apesar de todo esse caos que o circunda, Arthur não tem interesse específico nas minucias políticas. A sua esperança pessoal reside em Murray Franklin (Robert De Niro), apresentador de um talk show de humor que serve de grande inspiração profissional para Fleck. Além disso, é assistindo ao programa de Murray que Arthur vive momentos de efêmera alegria e desilusão ao lado de sua mãe adoecida, Penny Fleck (Frances Conroy). As rápidas interações com sua vizinha Sophie Dumond (Zazie Beetz) também server de janela para a normalidade na vida de Arthur.
O espiral de desgraças que recaem sobre Fleck ao longo da trama destrói cada pilar de segurança que havia em sua vida. Tudo ocorre organicamente, de forma bem articulada em cenas bem estruturadas e encadeadas. O caminho até o abismo trilhado por Arthur é mostrado de forma visceral ao espectador. Nesse sentido, como proposta de desenvolver o conceito em si do personagem Coringa, o roteiro funciona muito bem, em plena harmonia com a ótima direção de Todd Phillips.
Direção e Atuações
O trabalho de Phillips em Coringa é algo ímpar em produções baseadas em quadrinhos. É provavelmente o filme que melhor utiliza o cinema enquanto arte audiovisual para compor a totalidade da obra. Destacam-se a fotografia pensada de forma a utilizar o azul, amarelo e verde para definir os sentimentos e sensações do protagonista, a trilha sonora que embala os devaneios psicóticos de Arthur, e o uso bem pensado dos ambientes que servem de pano de fundo para cada etapa da transformação do Palhaço do Crime.
A atuação de Joaquin Phoenix é impecável. As expressões corporais do ator representam com maestria o desequilíbrio vivenciado pelo personagem. As mudanças de postura e de expressão denotam as alterações de persona de Arthur, fazendo cada cena mais imersiva que a anterior. É difícil não ser empático pelo sofrimento de Arthur, bem como é difícil não temer a violência errática do Coringa.
Pela proposta do filme e pelo desempenho de Phoenix, todas as outras atuações acabam por parecerem apenas aquilo que se esperava delas. Não comprometem e não se destacam. Todos servem de auxílio para o desenvolvimento do protagonista.
Depois dos créditos
Enquanto estudo de personagem e história de origem, o filme de Todd Phillips cumpre bem sua proposta. Não é uma representação que esgota as principais características do Flagelo de Gotham, mas é suficiente para criar um sólido ponto de partida, tornando crível toda a perversidade já conhecida do personagem. Nesse sentido, o final do filme parece um pouco decepcionante, dada a escalada dramática até o clímax, mas cumpre seu papel enquanto encerramento da transformação (ou morte metafórica) de Arthur Fleck. Permanece o sentimento mórbido e insano do personagem: “ninguém está rindo agora”.
Além disso, são muitas as emoções que Coringa pode desencadear ao final de sua exibição. É possível debater sobre a significância de cada evento, vez que a visão distorcida de Arthur enquanto lente de observação do mundo utilizada pelo público contamina toda a compreensão da realidade. No mais, refletir sobre a violência, abandono e desigualdade social são algumas das possibilidades para além do filme em si. Dessa forma, Coringa se mostra uma verdadeira obra de arte em tempos de relativa simplicidade cinematográfica.