Antes do Filme
É difícil dizer se Portrait of a Lady On Fire (no original, Portrait de la jeune fille en feu) é um romântico filme em que cada tomada é um quadro ou se é uma intensa pintura em movimento. Melhor dizendo, por que não os dois?
Antes de falar sobre a obra em si, abro um importante parênteses. Sua diretora, a francesa Scéline Sciamma (Tomboy, Lírios d’água e Garotas), é uma das signatárias do movimento 50/50 by 2020. Esse projeto questiona a atual distribuição de poderes entre gêneros dentro da indústria cinematográfica e possui como meta maior igualdade. Já de acordo com essas diretrizes, vemos que a diretora teve o cuidado especial de trabalhar principalmente com mulheres na produção de seu novo longa-metragem, não só em cena como também nos bastidores. Bravo, Scéline!
Trama e Roteiro
Estamos no fim do século 18, 1770, em uma pequena ilha na Inglaterra. Neste local isolado e desconexo da realidade vive a filha de uma condessa, Héloïse (Adèle Haenel, A Garota Desconhecida). A jovem, que acabara de voltar de um convento e havia perdido sua irmã – os diálogos sugerem que ocorreu um suicídio –, deve se casar, seguindo a tradição dos casamentos políticos da época.
Como um costume não-raro daquele momento histórico, os noivos só se viam no dia de seu casamento. Por isso, já prometida a um homem rico de Milão, um quadro de Héloïse deveria ser pintado, com o intuito de encantá-lo. Para esta missão, após fracasso de pintores anteriores, é contratada Marianne (Noémie Merlant, Les Drapeaux de Papier). A artista deveria se disfarçar como uma serva, aproximando e ganhando a confiança da outra. Entretanto, de maneira magnética, as mulheres se encontram no meio de um jogo de sedução, sensualidade e paixão.
Vencedor da Palma Queer (filme LGBTQ+ mais importante do Festival de Cannes), Portrait of a Lady On Fire justifica sua premiação em um trabalho minimalista, introspectivo e contemplativo de sua diretora. Como uma vela que não possui pressa de se apagar, Scéline Sciamma constrói lentamente o romance entre as duas protagonistas, em um sutil erotismo de olhares e bocas. Não há preocupação para que a audiência veja imediatamente o rosto de Héloïse, envolto por um véu, ou para que ocorra a concretização dos desejos carnais destas mulheres.
Não há nada mais metalinguístico do que uma obra cinematográfica sobre uma pintora também possuir uma belíssima cinematografia. As locações exteriores, envolvendo penhascos e praias, ganham um tom frio e solitário que maximizam a convivência silenciosa de Héloïse e Marianne. Além disso, o design de produção do castelo e o figurino também emulam perfeitamente a ambientação da história. Sua trilha sonora possui uma belíssima, marcante e presente canção a capella.
Personagens e Atuações
Como no mito grego de Orfeu e Euridice, citado no filme, o voyeurismo ganha um grande destaque. Nesse conto, o poeta havia perdido sua paixão para a morte, decidindo resgatá-la do inferno de Hades, que estipulou uma condição: que ele não olhe para ela durante a longa viagem de volta ao mundo dos vivos. O heroi não conseguiu e as personagens também. Não só pela natureza da profissão de Marianne, mas é por meio da observação que essas mulheres apaixonadas se aprendem e descobrem. O roteiro não conta com muitos diálogos, cabendo às atrizes um difícil trabalho sensitivo e corporal.
De fato, não havia pessoa melhor que Adèle Haenel para ser pintada. A atriz possui uma presença gigante em tela, sendo provocativa e ingênua simultaneamente. Já Noémie Merlant mostra-se em princípio uma figura determinada e inflexível que aos poucos se abre para mostrar um lado mais sensível. O elenco também é completo por Sophie (Luàna Bajrami, O Professor Substituto), uma outra serva da filha da Condessa, extremamente carismática.
Depois dos Créditos
Portrait of a Lady On Fire não se limita apenas a agradar um nicho específico do mercado, existindo também como uma obra única que está em falta nos cinemas. Suas mulheres são valorizadas – os homens nem fazem falta à trama – e se faz uma forte denúncia sobre como o universo masculino podou suas liberdades, seja criativa, sexual ou de controle do próprio corpo. O filme de Sciamma também aponta que a intensidade de uma incandescente paixão pode ser mais marcante na vida de alguém do que muitos amores estáveis. Por esse motivo, Orfeu escolheu olhar para Euridice, mesmo sabendo que isso geraria sua perda. Ele preferiu a intensidade e vivência de um breve momento em detrimento a uma memória vaga e indefinida em sua mente.
Revisão: Raquel Severini