Antes do Filme
Quando Andy entregou seus brinquedos para Bonnie, ao final de Toy Story 3, dando início a um novo ciclo, a trilogia mais famosa da história da animação parecia ter encerrado com chave de ouro. Com um intervalo de quinze anos entre o primeiro e o terceiro filme, uma geração inteira cresceu e evoluiu junto com o menino e seus bonecos. Quase como se nos colocássemos no lugar de Andy, depositamos nossos sentimentos nestas pequenas criaturas de plástico. Superamos os conflitos entre Woody e Buzz; passamos pela tortura de Sid; nos encantamos com Jessie; nos iludimos com Lotso, e, claro, rimos bastante com Rex, Sr. Cabeça de Batata, Porquinho e os pequenos alienígenas verdes.
No entanto, não é possível esquecer que estamos falando de um produto da Pixar, esta pertencente à Walt Disney Company. Nos últimos anos, a empresa tem investido fortemente em versões live-action de suas animações, além de reviver franquias antigas, na tentativa de atrair uma nova geração para seus maiores clássicos — e, obviamente, lucrar em cima disso. Ao ser anunciado, Toy Story 4 pode ter plantado uma dúvida na mente dos mais céticos. Seria necessário revisitar este universo? Felizmente, a resposta é sim. Se você achou a aventura anterior emocionante, leve um lenço para o definitivo e recompensante ponto final na história do xerife Woody.
Trama e Roteiro
Despertando o emocional do público logo de cara, Toy Story 4 começa nove anos no passado, no dia em que Betty foi levada de Andy. Após a sequência inicial, o tema clássico “Amigo, Estou Aqui” toca, completando a nostalgia. No presente, Bonnie está pronta para começar o jardim de infância, enquanto Woody se sente abandonado, já que a boneca Dolly assumiu a liderança e Jessie foi feita a nova xerife. Tentando recuperar seu prestígio inicial, o cowboy ajuda sua dona, sem que ela perceba, a criar Garfinho. Feito de um garfo de plástico, palitos quebrados e outros remendos, o talher possui um grande problema. Ele acredita fielmente que foi feito para ser utilizado e depois descartado, mas não consegue fugir, pois a menina está apaixonada por sua nova criação.
A introdução de um protagonista praticamente determinista, apesar de inocente primeira vista, gera a oportunidade para que este seja o episódio mais filosófico dos quatro. Camuflado e suavizado por diversas piadas entre os diálogos, o sentido da existência se torna o principal tema do enredo. Para Woody e Gabby-Gabby — “vilã” do filme — a função dos brinquedos é satisfazer seus donos e serem retribuídos com amor. Eles não são um fim em si próprios, mas um meio. Já Betty acredita no oposto, com a plena liberdade sendo o objetivo máximo. Em outra direção está Garfinho, acreditando na imutabilidade de seu destino.
Mais uma vez, o mundo da animação tem se mostrado o lugar perfeito para fazer histórias adultas escondidas sob uma camada infantil. Há uma piada recorrente envolvendo Buzz Lightyear e seu sistema de fala, o qual ele acredita ser sua voz interior após interpretar erroneamente uma frase de Woody. Momentos como este funcionam tanto para que a audiência mais nova ria quanto para que o adulto reflita sobre a auto determinabilidade. Por ter a participação de nomes veteranos em Toy Story, como John Lasseter, Andrew Stanton e Lee Unkrich, não havia como o resultado ser diferente em termos de profundidade da trama.
Personagens e Atuações
Garfinho é a grande adição à turma de bonecos, pois além de seus levantamentos morais também conta com uma bizarrice visual paradoxalmente cativante. Os inseparáveis Patinho e Coelhinho são, certamente, o alívio cômico do roteiro, mas parecem gratuitos e desinteressantes por boa parte do tempo — levantando a questão do porquê rostos antigos como Rex e Sr. Cabeça de Batata não estão ocupando essa função — até que, finalmente, uma piada recorrente envolvendo os dois funcione. É possível também dizer que Betty é como uma adição nova, mudando completamente sua personalidade e assumindo um protagonismo inesperado.
Aliás, um dos grandes acertos de Toy Story 4 é reconhecer a importância feminina de seu elenco e, certamente, de sua audiência. Sem soar como uma mudança orquestrada, Woody perde a liderança naturalmente para Dory, Jessie, Betty, e até a própria Gabby-Gabby. São as bonecas que tomam decisões e executam as principais ações do filme. Quebrando de vez o paradigma criado por Toy Story 1, Betty evolui da donzela em perigo para a aventureira habilidosa e independente que comanda seu antigo salvador.
Ainda sobre elas, a “vilã” Betty-Betty também possui uma complexidade digna o suficiente para não lhe rotular em tal categoria. Suas motivações rapidamente são entendidas e compreendidas, o que de forma alguma é um problema. Ter um antagonista não é sinônimo de uma história satisfatória, mas personagens bens construídos certamente são. Além disso, junto com a personagem estão sempre seus capangas, que completam a cota de criatura assustadora em todo Toy Story, indo desde a cabeça de bebê no corpo de aranha eletrônica até o bebê com cabeça gigante.
Depois dos Créditos
Para aqueles que esperam grande destaque para a turma antiga, pode haver um certo estranhamento com sua falta de protagonismo, inclusive de Buzz Lightyear, estando em um núcleo separado com a família de Bonnie. Porém, sua presença não é inútil. Há um momento especial guardado para os fãs que definitivamente não decepciona, sendo aquilo que esperamos por 24 anos. Por isso, tenha em mente que, antes de tudo, o filme é sobre Woody em um processo de autoconhecimento.
Tendo isso assimilado, não restam dúvidas de minha parte ao afirmar que Toy Story 4 é uma das animações mais complexas, satisfatórias e recompensadoras já feitas. Emocionante, extremamente engraçado, reflexivo e repleto de easter eggs, a conclusão da saga é tudo que prometia. Se o final da terceira aventura parecia digno para o xerife e sua turma, aqui é catártico. Ao infinito, e além!
Revisão: Raquel Severini