Antes do Filme
Desde 1972, fazer filmes do gênero máfia acaba desembocando em uma inevitável questão: este é o novo Poderoso Chefão? No mundo da arte, comparar obras diferentes e fazer rankings se tornou uma praxe. Dito isso, seria desnecessário atribuir tal peso nas costas da nova obra do diretor italiano Marco Bellocchio (Vincere e Bom Dia, Noite). Em uma coprodução envolvendo diversos países, The Traitor (Il Traditore, título original) possui um atrativo a mais para o público, já que uma dessas nações é o Brasil. A presença brasileira é constante — desde os créditos iniciais, quando aparece o logo do Telecine e do Canal Brasil, visitando depois locais como a praia de Grumari (Rio de Janeiro) — além de ser estrelado por Maria Fernanda Cândido (da novela Terra Nostra).
Trama e Roteiro
Certa noite, as famílias que dominam a máfia italiana se reúnem para celebrar um tratado de paz entre elas. Dentre os líderes está Tommaso Buscetta (Pierfrancesco Favino, As Crônicas de Nárnia: Príncipe Caspian), que prefere chamar a organização criminosa de Cosa Nostra. Em busca de paz, além de cansado, o chefe decide se mudar para o Brasil com seus filhos e esposa, Maria Cristina (Maria Fernanda Cândido). Entretanto, suas expectativas rapidamente são alteradas quando membros do acordo de trégua começam a ser assassinados e a polícia vai em seu encalço. Rapidamente capturado e já desiludido com o sistema, Tommaso decide colaborar com as autoridades, principalmente na figura do juiz Giovanni Falcone (Fausto Russo Alesi, Vincere), para ser um informante.
The Traitor pode ser primordialmente dividido em 3 atos: pré-julgamento; julgamento e pós-julgamento. Com extensos 135 minutos, a narrativa do filme se torna um pouco cansada e arrastada ao longo do segundo ato, quando o ritmo do filme desacelera completamente. Ainda que as cenas do tribunal sejam repletas de um conteúdo técnico e complexo, o cineasta italiano faz um interessante trabalho incorporando uma teatralidade. Revezando seu direcionamento de câmera entre o protagonista, juízes e acusados, a troca de xingamentos entre as partes também ganha um tom cômico e leve, contrapondo-se à natureza maçante do julgamento.
Já no primeiro ato, destaca-se a cena de execução dos mafiosos, extremamente bem editada, com dinamicidade e uma trilha sonora urgente. Tal sequência lembra a gloriosa montagem de batismo de Michael Corleone em O Poderoso Chefão e eu prometo que essa será a única relação que eu farei entre as obras. Apesar de ser um drama biográfico, Marco Bellocchio incorpora na trama um ar poético ao colocar o informante revisitando seu passado através de flashbacks, juntamente com um constante onirismo que traz uma confusão do que é real ou não, tanto para o mafioso quanto para o espectador.
Personagens e Atuações
Como todo filme biográfico, não há como se falar de seu sucesso sem que seu ator principal brilhe. O italiano Pierfrancesco Favino é um típico garanhão italiano, com uma imponência visível mesmo quando está sentado durante o julgamento. Além disso, o ator é confiante e calmo, nunca parecendo perder o controle quando seu personagem está sendo pressionado por outros. Há certas cenas que exigem um maior descontrole do personagem, como quando convulsiona e sua entrega é impressionante. Sem exageros, o ator poderia ter levado o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes 2019, se não fosse pelo brilhante trabalho de Banderas em Dor e Glória.
Outro personagem que possui um desenvolvimento adequado é o juiz Falcone, sempre determinado e incisivo, mostrando uma ótima química com Tommaso. Aliás, tal interação funciona graças aos bons diálogos do roteiro, também coescrito por Bellocchio. Infelizmente, o mesmo não pode se falar da brasileira e do restante do elenco. Ela parece não ter personalidade própria, sendo instrumentalizada e servindo apenas como motivação para as ações do marido. Os personagens secundários são tantos que é quase impossível não lhes confundir, além do roteiro constantemente fazer diversas citações, confiando ingenuamente na capacidade do público de familiarizar-se rapidamente.
Depois dos Créditos
Trazendo interessantes questionamentos sobre a essência da máfia, The Traitor sabe reconhecer o que ela já fez pelos trabalhadores italianos quando o Estado foi omisso, mas também acusa a brutalidade do grupo, que aumentou principalmente após o ingresso no tráfico de cocaína. Mais que isso, a crítica vai além e aponta para todo o sistema estatal como corrupto, sendo o outro lado da moeda que contém os criminosos.
Apesar da saturação de personagens e com uma longa sequência de tribunal, o filme ainda assim se sustenta como a biografia de um homem complexo e de valores, transformando-se em uma pessoa non grata. A experiência do veterano cineasta é essencial para um contrabalanceamento perfeito entre realismo e onirismo; seriedade e comicidade; moralidade e imoralidade; ação e diálogos. Assim como Tommaso Buscetta, é quase como se o diretor Marco Bellocchio fosse nostálgico dos tempos áureos da Cosa Nostra.
Revisão: Raquel Severini