Antes do Filme
O crítico quem a vos escreve poderia apenas fazer uma análise técnica de Bacurau, mas seria um desserviço ao diretor pernambucano Kléber Mendonça Filho – e ao codiretor Juliano Dornelles – tratar seu terceiro longa-metragem a partir de tal abordagem. Como o próprio diretor retrata em seu documentário Crítico (2008) – ele atuou como crítico antes de diretor – há uma interação quase simbiótica entre crítica e cinema, que se complementam mutuamente e formam um novo sentido a partir desta união.
Desde quando protestou na estréia de Aquarius, no 69º Festival de Cannes, Kléber relembrou ao mundo que fazer cinema é também um manifesto político, independente de qual seja o valor defendido. Assim, é nesse contexto que Bacurau estreou no 72º Festival de Cannes, e também não é a toa que a press conference após o filme estava lotada de perguntas sobre as manifestações no Brasil contra os cortes na educação, que ocorriam simultaneamente – em uma grande ironia do destino – à exibição do filme.
Personagens e Atuações
Tudo parece calmo quando a melodia “Não Identificado“, de Caetano Veloso, ecoa lentamente diante da imensidão sideral mostrada nos segundos iniciais de projeção, remetendo ao letreiro clássico da franquia Star Wars, anunciando que aquela trama se passa em algum momento do futuro. Após esse pequeno foreshadowing de um caráter sci-fi que viria a seguir, o vilarejo de Bacurau é apresentado, distante de qualquer megalópole e no coração do sertão nordestino. Assim, a história começa em um dia especial para seus moradores, pois a matriarca Carmelita morrera, e com isso uma grande homenagem fora preparada para celebrar seus longos 94 anos.
Neste contexto, as principais figuras de Bacurau são apresentadas: Teresa (Barbara Colen), a neta que mora longe e veio prestar homenagens; Plínio (Wilson Rabelo), filho de Carmelita e professor; além de Domingas (Sônia Braga, em um papel com menos tempo de tela, mas não menos memorável), médica local e grande amiga da líder, visivelmente transtornada com sua morte. No entanto, há muito mais seres peculiares que completam a população: o matador de aluguel apelidado Pacote (Thomas Aquino, uma espécie de galã moderno), que possui um vídeo viral na internet com seus melhores assassinatos; um gigolô e suas acompanhantes; um repentista que jamais larga seu instrumento; e um carismático anunciador de notícias através de uma carreta de som.
Com tantas figuras presentes na trama, é impossível dizer que há um centro de destaque em Bacurau, que segue uma estrutura coletivista, assim como Sergei Eisenstein fez em Strike (1925), filme que mostra operários russos se rebelando contra seus patrões. Destarte, Bacurau é sua maior protagonista, orgânica e com vida autônoma. Para reforçar o caráter realista da vila, há a presença de diversos atores não-profissionais, jamais deixando um vazio na tela. Após um primeiro arco focado na população local, novos personagens são acrescentados à história, como o foragido Lunga (o incrível Silvero Pereira) e seu bando, além do caçador Michael (Udo Kier) com seu grupo de estrangeiros. Assim, com todas as peças do xadrez postas na mesa, as diferentes subtramas vão se convergindo, criando interações inusitadas e mostrando uma extrema química de elenco, havendo pelo menos uma cena para cada ator brilhar.
Trama e Roteiro
Após a leitura dos parágrafos acima, é provável que o leitor ainda não faça ideia do que se trata esse filme, e se isso acontece é porque a missão deste crítico obteve sucesso. Repleto de reviravoltas e plot twists, essa é uma experiência cinematográfica que deve ser enfrentada com o mínimo de conhecimento possível sobre sua trama. No entanto, é possível afirmar que Bacurau é metamorfose de gêneros: é uma ação gore à la Tarantino; é comédia brasileira como o Auto da Compadecida; ficção científica distópica com toques de The Purge e Robocop; terror à la John Carpenter e western à la Sergio Leone. Justamente por isso, um dos maiores méritos dos diretores é conseguir o difícil feito de trabalhar com fluidez e espontaneidade essa alternância constante.
Além de ser multifacetado, o roteiro é extremamente eficiente em sua abordagem temática. Se afastando do realismo social flertado no primeiro ato, Kléber Mendonça usa dos diversos gêneros que passeia para fazer suas denúncias. Portanto, é perfeitamente plausível que naquele universo coexista um prefeito populista, que tenta comprar votos da população através de cestas básicas, e um drone em formato de disco voador. Há também espaço para o uso do humor como ferramenta de crítica, ilustrado perfeitamente na cena em que o personagem sulista se considera branco diante dos habitantes de Bacurau, mas para o grupo americano que está com ele isso é motivo de piada, já que para eles o homem também não é branco, alfinetando assim o brasileiro com síndrome de vira latismo.
Para que a prosopopeia de Bacurau funcione, há um grande mérito no trabalho do diretor de arte Thales Junqueira, que dá vida e alma nos pequenos detalhes do cenário, seja nos pequenos detalhes do museu ou na escola; na fotografia de Pedro Sotero, que através de suas lentes capta a vastidão do sertão nordestino e o sentimento de isolamento; além da codireção de Kléber e Juliano Dornelles que rapidamente consegue acostumar o olho do público com a geografia espacial daquele lugar.
Ainda falando de direção, a marca autoral de Mendonça Filho está presente principalmente através dos constantes zooms. Outro trabalho importante é a edição de Eduardo Serrano, que dita perfeitamente o modo como o filme alterna entre gêneros, seja pela criação do suspense nos momentos de terror ou na clareza dos momentos de ação. Não menos importante, a trilha sonora realça o contraste entre futuro e passado da trama, seja por homenagens à Luiz Gonzaga ou quando na cena em que personagens estão dançando capoeira, mas a trilha sonora remete à psicodelia.
Depois dos Créditos
Sem jamais esquecer de suas raízes nordestinas, a palavra Bacurau se ressignifica nas mãos de Kléber Mendonça Filho. Agora, além de ser uma ave nativa, passa a ser sinônimo de resistência, cultura e tradição. O diretor deixa sua mensagem para o imperialismo norte-americano e a cultura do entreguismo: O Brasil e a América Latina não se curvam, aqui o povo luta. Como consequência da falta de protagonista, a catarse final deixada de lição é explícita: o povo deve permanecer unido. Em seu grande filme-denúncia, culminando merecidamente no Prêmio do Juri do Festival de Cannes, Kléber Mendonça Filho se reafirma de vez no hall dos grandes cineastas brasileiros.
Escrito por Michel Gutwilen, com colaboração de Emília Schramm.